“O lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar. Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas”. A frase de Djamila Ribeiro, filósofa, feminista negra e escritora, faz parte do seu livro O que é lugar de fala? lançado em 2017. Nele, Djamila apresenta um panorama histórico sobre as vozes que foram historicamente interrompidas. A partir disso, é possível questionar: quem tem mais chances de falar (e ser ouvido) na sociedade?
Uso este espaço para abrir diálogo com você que me lê e me permite colocar na mesa as nossas pautas. Para resolver minha curiosidade (e preocupação) em relação às pessoas com deficiência que estão vivendo uma guerra na Ucrânia, fui pesquisar e olha o que descobri: a população ucraniana com deficiência é de 2,7 milhões de pessoas e as condições de acessibilidade para evacuação são precárias. Não há estrutura e por isso são forçadas a ficar em casa, sem rumo e desamparadas.
Países distantes, realidades próximas – o Fórum Europeu da Deficiência divulgou uma carta aberta aos chefes das instituições europeias, aos chefes de Estados europeus, russos e ucranianos e à OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), para alertar sobre a situação dramática em que estão vivendo essas pessoas. A carta chama a atenção também para as mulheres com deficiência, pelo risco de violência sexual, e para as crianças expostas a abusos e abandono. Das pessoas com deficiência que vivem em instituições, segregadas de sua comunidade, entre elas estão 82 mil crianças com deficiência, que correm um risco enorme de serem esquecidas.
De acordo com a Inclusion Europe, uma instituição que atua em 39 países, o abandono de pessoas com deficiência, principalmente a intelectual, vem acontecendo a cada dia mais e de forma terrível. Muitas continuam presas em Kiev, ou melhor, em Kyiv – em respeito à nação que está sob ataque russo neste momento e que chama a capital de seu país em ucraniano, Київ (pronunciado ki-iv).
Tempos sombrios, esperança entre névoa – indo mais fundo em minha pesquisa, encontrei no site da ONU a notícia sobre Yulia Klepets, moradora de Kiev, que está isolada em seu apartamento junto com sua mãe de 82, com restrições de mobilidade, e sua filha Aryna, de 25 anos, que é autista. As três estão cercadas pelo confronto e próximo ao local onde moram houve um grande estrondo. Um prédio a 200 metros de sua casa foi atingido, abrindo um grande buraco, de onde surgiram fogo e fumaça. Os detritos voaram ao redor. Com a explosão, Yulia contou que sua filha Aryna entrou em choque e parou de se mexer.
Acompanhar os desdobramentos da trágica situação da Ucrânia é sentir um bocado de angústia e indignação. É refletir sobre o processo histórico e ideologias que impedem um novo começo, um começo que integre a essência do ser humano, e, sobretudo, que abra caminhos para a libertação e a liberdade. Vejo a obra da cientista política, Hannah Arendt (1906 – 1975), presente nas questões contemporâneas que estamos presenciando. Num trecho do livro sobre o totalitarismo, ela disse: “Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança”.
Precisamos recolher as cinzas – o momento nos exige um escudo, palavras que nos defendam, precisamos de conhecimento, de bandeiras que sinalizem as urgências, para que nossos esforços não sejam dispersados nem nossas lutas. Minha torcida e orações são para que o terror cesse fogo imediatamente. E que a falta de coerência das justificativas para os ataques ao povo ucraniano encontre a esperança e a compaixão. Que as catástrofes do passado não sejam esquecidas e que a lógica da intolerância, do ódio e da ganância encontre a resistência da liberdade e da humanidade.
Que o medo seja a proteção e a esperança a munição. Que no feriado da Semana Santa possamos ter paz. Porque neste carnaval, só vimos as cinzas que uma guerra é capaz de produzir.
Sem comentários